Para um novo olhar sobre o sistema da economia mundial (Mario Murteira)

8 de junho de 2009 at 10:58 1 comentário

Por Mario Murteira, junho de 2009

Transições no sistema mundial

Sem deixar de reconhecer, como muitos autores insistem, que o processo vem de trás na História, é legítimo afirmar que «algo de novo» surge na economia mundial desde o último quartel do século passado. Algo que é comum designar por «globalização», palavra susceptível de diversas interpretações mas que em termos económicos significa, no essencial, a emergência duma economia mundial crescentemente interdependente, em que já não tem cabimento por exemplo falar de «Terceiro Mundo», pois existe um mundo único, embora profundamente desigual.

Neste sentido, pode pois dizer-se, que a globalização é integração, formal e informal, da economia mundial. Além do mais, note-se que este processo implica o condicionamento gradualmente mais forte dos estados ditos «nacionais» por actores e poderes que são, na realidade, «transnacionais». Além disso, diluem-se as fronteiras entre os países, sem que no entanto se assista à emergência transparente dos novos poderes que regulam a convivência das nações. Esses novos poderes, na realidade, ficam de certo modo escondidos pelos discursos correntes sobre a «economia de mercado» e as supostas virtudes da concorrência.

Podemos imaginar um cenário muito diferente mas não melhor do que o acima referido, como o mundo da nova «guerra dos trinta anos», entre 1914 e 1945, ou mesmo depois disso o tempo da chamada «guerra fria», à beira da catástrofe nuclear, com espaços fechados e agressivos, ignorando-se e/ou guerreando-se mutuamente.

Mas, acentue-se, a crescente integração do mercado global é compatível com acentuação de desequilíbrios e desigualdades, e é isso que está acontecendo. Segundo estatísticas publicadas pela ONU, estima-se, por exemplo, que cerca de 60% da população mundial tem apenas 6% do rendimento mundial, enquanto os 40% mais ricos dispõem dos «restantes» 94%. As populações tendem a concentrar-se nas cidades, procurando melhores condições de vida, e é em grandes centros urbanos como São Paulo, Nova Iorque, Bombaim ou Cantão que hoje as desigualdades se manifestam mais cruamente, em todas as suas implicações económicas, sociais e culturais.

Em particular, essa concentração do rendimento e da riqueza tem significado o declínio da parte do trabalho no rendimento nacional na maioria dos países da Europa Ocidental e também nos EUA. E esse declínio parece ter-se iniciado em 1975, em período de grande viragem na evolução do sistema da economia mundial, além do mais ocasião do primeiro grande «choque petrolífero», quando o preço internacional do petróleo, num só ano, mais do que triplica.

Um grande actor deste processo é a empresa transnacional (ETN), ou seja, a empresa ou grupo de empresas que detém capacidades produtivas em várias economias nacionais. Aquilo que correntemente se designa por «Investimento Directo Externo» (IDE), isto é, o investimento feito por uma empresa fora do país onde tem a sua sede, expande-se rapidamente desde meados dos anos 1970.

Facto que é hoje verdadeiro não só para os países «desenvolvidos» de maior dimensão ou volume da produção nacional – como os EUA e o Japão – mas também para países como a China e a Índia. A China que, segundo estimativas recentes, já é a terceira economia mundial em dimensão, ultrapassando a Alemanha. E a expansão do IDE não respeita apenas a empresas do sector industrial mas cada vez mais também a empresas de serviços, em particular serviços financeiros. E ainda «serviços culturais» de várias naturezas, como filmes, músicas e séries televisivas, de que países como a Índia e o Brasil, além dos EUA, podem tornar-se grandes produtores e exportadores.

Claro que a chamada «transição para a economia de mercado» que se generaliza a partir dos anos 1990, com o colapso da União Soviética, acelera o referido processo de globalização ou crescente interdependência da economia mundial. E recorde-se que a embora não confessada transição da China para a economia de mercado, pela crescente abertura ao mercado mundial, que se inicia após a morte de Mao Zedong, vai para trinta anos, também contribui decisivamente para este processo.

Incluindo a China, a população dos países «em transição para a economia de mercado», nos anos 1990, pode avaliar-se em cerca de dois biliões de pessoas, isto é, um terço da população mundial. Só por si, o facto mostra a amplitude da «transição» referida.

Esta evolução, relacionada com a importância crescente das ETN na concorrência no mercado global, veio a redundar na importância acrescida da chamada «competitividade estrutural» que respeita aos factores estruturais que, em cada economia nacional, determinam a maior ou menor capacidade para atrair e reter o investimento estrangeiro. Estão em causa diversos factores, tais como a estabilidade monetária, o regime fiscal, o nível de salários e qualificação da mão-de-obra, a flexibilidade do mercado de trabalho, o funcionamento dos tribunais e a administração da justiça, etc. Na prática, o «estado amigo do mercado» preconizado pelo Banco Mundial, é afinal o estado «amigo» das empresas e grupos transnacionais, cada vez mais distanciado dos interesses dos trabalhadores e das suas organizações.

Outra dimensão deste acelerado processo histórico característico das últimas décadas do século passado remete para o desenvolvimento dum novo modelo de crescimento económico, a chamada, com invejável optimismo, «economia baseada no conhecimento» (EBC).

Nesta perspectiva, é ainda indispensável mencionar o desenvolvimento das novas tecnologias da informação e da comunicação (TIC), facto que, além do mais, permite a globalização do capital conhecimento e também a aceleração da globalização do capital financeiro. Os dois processos parecem independentes um do outro, mas não é assim, e a questão merece particular atenção.

 

O «velho» e o «novo» modelo de crescimento económico

Nos começos da segunda metade do século passado, dizia-se que a independência política das ex-colónias deveria ser seguida pela «verdadeira» independência, esta económica. E para tanto seria indispensável pôr em prática uma estratégia de industrialização, por seu turno, centrada nas «indústrias industrializantes», isto é nas indústrias produtoras de equipamentos ou bens intermédios, como metalurgia, mecânicas, químicas, materiais de construção. E os países do Terceiro Mundo não deveriam, como muitos supunham, «especializar-se» nas indústrias produtoras de bens de consumo, como têxteis, vestuário e calçado.

No fim de contas, esta perspectiva conduzia os governos dos países do Terceiro Mundo, a olhar com algum fascínio para a estratégia soviética de industrialização baseada nas indústrias pesadas e relativamente introvertida. Fascínio que podia ser completamente alheio ao marxismo-leninismo, afinal assumido como ideologia oficial do regime soviético.

Esta concepção fazia assim da acumulação de capital um processo essencialmente material, conduzindo ao aumento das capacidades produtivas instaladas. Não se falava, então, ou falava-se muito pouco, de capitais ou activos em algo difícil de medir, sequer de definir, como o «conhecimento».

Tratava-se, pois, de uma ideologia desenvolvimentista característica duma época em que os países de independência recente desejavam rapidamente reduzir ou mesmo anular o seu atraso e dependência relativamente aos países ocidentais que os tinham colonizado e dominado. E julgava-se poder fazê-lo num período relativamente curto, desde que o processo fosse devidamente planeado pelo estado.

Pode-se encontrar exemplos dessa ideologia em todas as ex-colónias portuguesas em África, nos primeiros anos após as independências, incluindo as de menores dimensões como Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Entretanto, na mesma conjuntura histórica, quando a industrialização do Ocidente tinha alcançado a maturidade, atinge-se a fase mais avançada da social-democracia europeia, em países como a Grã-Bretanha, a França. a Alemanha, a Suécia, Noruega e Dinamarca. Um período em que também o sindicalismo atinge o ponto mais alto da sua longa promoção militante no quadro do capitalismo industrial. Sindicalismo que surge na clandestinidade, depois conquista a tolerância legal e finalmente é promovido pelos próprios poderes públicos e no quadro do sistema social vigente.

Desse sindicalismo pode dizer-se, visto a posteriori, que foi afinal «poder compensador», expressão de Galbraith e força integradora dos trabalhadores industriais no sistema económico e social
E é hoje claro que essa força, em certa medida, também resultou, em tempo de «guerra fria». da real ou suposta ameaça do «Urso da Floresta», como o economista norte-americano Lester Thurow designou a União Soviética dessa época. Integrar os trabalhadores na sociedade, satisfazendo grande parte das suas aspirações, era afinal um mal menor para a classe dominante, na alternativa da revolução social.

Indústria, operário industrial e sindicalismo necessitam-se conjuntamente, assim, em determinada fase do crescimento económico ocidental.

E poderá também falar-se, nesse tempo e nesses países, dum «estado amigo dos trabalhadores» mesmo em termos de estratégias de política económica, estado que considera, na linha keynesiana, o pleno emprego como objectivo primordial da política económica, e não a estabilização monetária e financeira, como mais recentemente sucede, quando chega a predominar a ideologia neo-liberal e o chamado «Consenso de Washington».

Agora, o estado deverá ser menos «amigo dos trabalhadores» e na expressão do Banco Mundial, mais «amigo do mercado» (adoptando a chamada market friendly approach).
Antes, como afirmou Gunnar Myrdal, prémio Nobel da Economia, o estado deveria procurar a integração interna da economia nacional, por forma a garantir igualdade de oportunidades a todos os cidadãos, independentemente, da actividade, da região ou do género Hoje, como se sabe, prevalece a integração no mercado global, mesmo com sacrifício da integração interna da economia nacional.

É neste fundo histórico que pelos finais do século passado, começa a falar-se dum novo modelo de crescimento económico baseado no conhecimento.

Há uma conjugação de diversas tendências, entre as quais o peso crescente das actividades terciárias na estrutura da produção e do emprego dos países de maior desenvolvimento económico e, além disso, a importância também crescente de certos serviços mais «intensivos em conhecimento», como serviços de saúde e educação, informática, serviços financeiros, serviços de investigação científica e tecnológica, serviços de assistência técnica às empresas, marketing e comunicação social.

Mas, mais profundamente, a inovação (em sentido amplo, que inclui não só o lançamento de novos produtos e processos, mas também a adaptação destes às tendências dos mercados e a prática de novas estratégias de gestão e internacionalização) é instrumento preponderante da competição no mercado global. Isso determina uma necessidade, ou procura, de conhecimento como suporte da inovação.

O termo «conhecimento» significa aqui, simplesmente, a organização da informação para resolver um problema ou responder a uma questão: «conhecer» pressupõe assim acumular informação mas não se reduz a isso.

A própria actividade de Investigação e Desenvolvimento Experimental (I&DE) passa a ser fortemente condicionada por esse propósito, directo ou directo, de apoiar o processo de inovação no mercado global
É assim que se pode também falar dum novo «modo de produção» do conhecimento científico mais orientado para a esfera económica da organização social, e menos impulsionado pela simples e desinteressada curiosidade intelectual dos investigadores.

Além disto, o lugar ocupado pelos «colarinhos azuis» na estrutura do emprego passa para os «colarinhos brancos», isto é, o trabalhador dos serviços substitui o operário da indústria como actor principal no mercado de trabalho. E este mercado vai configurar-se diferentemente do tempo áureo da social-democracia e do sindicalismo, agora no contexto do que se pode designar por «Nova» Economia do Trabalho.

 

A Nova Economia do Trabalho e os desafios aos modelos sociais no século XXI

Um outro facto relevante para entender o que podemos chamar «Nova» Economia do Trabalho tem a ver com o posicionamento no mercado global de duas grandes economias de crescimento rápido, a China e a Índia., cuja população regula actualmente por 1,4 e 1,2 biliões de pessoas, respectivamente.

A China tem uma influência crescente no funcionamento da economia mundial e por diversas vias, directa ou indirectamente relacionadas com o mercado global do trabalho, como as referidas a seguir.

Aliás, há razões para falar, hoje, do desvio do Ocidente para certas regiões da Ásia, da grande dinâmica do crescimento económico mundial A economia norte-americana, ainda que dominante, é todavia cada vez mais limitada e condicionada pela envolvente externa.

A crescente abertura da China ao mercado global, associada à sua dimensão e ao crescimento invulgarmente rápido, determina uma atracção forte do IDE, e uma presença competitiva de exportações chinesas, por todo o lado. Isto significa um desafio à referida «competitividade estrutural» das outras economias, que pretendem igualmente atrair e reter capital estrangeiro no espaço limitado pelas suas fronteiras nacionais. Como também, é claro, reter «em casa» as próprias cadeias produtivas das empresas nacionais, que tendem a ser atraídas pela economia chinesa. Significa ainda uma pressão para substituir exportações ou produções nacionais por produtos chineses, além do mais, favorecidos por mão-de-obra barata.

Tudo isto, como é evidente, condiciona salários e empregos nas economias ocidentais.

Esta dimensão «chinesa» do mercado global do trabalho é completada por uma influência distinta da Índia. Aqui, trata-se duma especialização muito qualificada em determinadas profissões ou actividades altamente «intensivas em conhecimento», como serviços de saúde e tecnologias da informação ou do conhecimento. Isto tanto pode significar, por exemplo, a «exportação» de médicos indianos para a Europa ou os EUA, como a transferência de parte das cadeias produtivas duma empresa norte-americana para a Índia, aproveitando a mão-de-obra altamente qualificada e relativamente barata aí localizada.

Todas estas tendências que sumariamente se descrevem, implicam um condicionamento complexo e novo das relações de trabalho.

Face a este novo contexto do mercado global, que condiciona decisivamente as economias e sociedades nacionais, o «velho sindicalismo» dos tempos áureos da social-democracia carece de rever os seus fundamentos e estratégias. Resta saber como poderá orientar-se tal revisão e inquirir se é necessária (e possível) a metamorfose sindical que parece estar em causa.

E, se porventura concluirmos ser irremediável o ocaso do sindicalismo como grande intérprete e construtor duma certa concepção da democracia, ocorre perguntar pelo futuro da mesma, pois com o desaparecimento não só do actor principal, mas também da personagem interpretada, pode duvidar-se do sentido do próprio argumento.

Uma perspectiva possível e urgente sobre esta temática conduz-nos, deste modo, a questionar o futuro dos grandes «modelos sociais» que fizeram certos países europeus padrões da social-democracia, depois de eles próprios terem sido pioneiros da moderna democracia política. E esta interrogação é tanto mais oportuna quando o chamado «modelo social europeu» é ainda emblemático da integração europeia e mesmo, talvez, ainda padrão normativo da globalização procurada pela Europa no século XXI.

Aliás, não deve surpreender-nos que uma questão semelhante se possa colocar a propósito da transição chinesa para o mercado global: essa transição está a corroer os fundamentos tradicionais da organização social a vários níveis, incluindo o dos grandes complexos estatais abrangentes duma rede ampla de estruturas económicas e sociais. Que mesmo no caso duma grande universidade estatal, por exemplo em Pequim ou em Cantão, podem incluir residências de professores e alunos, hospitais, piscinas, pequenos mercados de bens de consumo, cantinas e oficinas de reparação de viaturas. Um complexo processo de adaptação ao movimento de privatização, não só dos processos produtivos mas também das correspondentes estruturas sociais está assim em curso na China, à medida que esta aprofunda a sua penetração no mercado global e este, por seu turno, aprofunda a sua influência no sistema socio-económico do país.

 

A sustentabilidade do mercado global e a presente «crise» sistêmica

Há crescente consciência da gravidade da questão ambiental, e dos riscos para as gerações vindouras do prosseguimento de actuais tendências. O relatório da ONU sobre o «Desenvolvimento Humano Mundial» para 2007/8 é muito elucidativo das dimensões dos riscos para as gerações futuras. No essencial, a grande questão pode formular-se nos seguintes termos.

A partir do século XVIII, dois grandes movimentos históricos surgem no Ocidente, com consequências gradualmente disseminadas pelo sistema mundial: o crescimento demográfico que faz a população mundial aproximadamente decuplicar desde 1700 até hoje e o chamado crescimento económico. Este, em larga medida apoiado no progresso tecnológico, além do próprio crescimento demográfico, segundo uma estimativa de Simon Kuznets, prémio Nobel de Economia, permitiu no caso dos EUA multiplicar por cerca de mil o volume da produção nacional nos dois séculos a seguir à independência norte-americana, em 1776.

Esses dois processos de grande envergadura, além do mais, têm crescentes consequências sobre a envolvente ambiental, traduzidas designadamente na poluição atmosférica e no aquecimento global. Tomando como referência a emissão de dióxido de carbono (CO2), e segundo o relatório acima referido, os EUA contribuem em cerca de 20% para os níveis actuais de CO2 no planeta, seguidos de perto pela China (17%). Não é possível prolongar ao longo do presente século as tendências do crescimento económico mundial, e as correspondentes implicações ecológicas, sem pôr gravemente em causa, eventualmente de forma irreversível, a crónica de «desenvolvimento humano» que apesar de todas as guerras e catástrofes acompanhou a humanidade no passado, em particular na segunda metade do século XX.

Do que decorre a dramática urgência da questão do desenvolvimento sustentável.

Também convém recordar, tal como faz a ONU no citado relatório, que os mais prejudicados pelo presente curso de acontecimentos não têm hoje qualquer poder de decisão ou influência sobre aquele curso: são, por um lado, os mais pobres dos tempos actuais, que se acumulam sobretudo em grandes cidades, quer no centro quer nas periferias do mercado global; e por outro lado, as futuras gerações que herdarão um planeta porventura irremediavelmente degradado na sua essência natural.

A este panorama complexo e preocupante, juntou-se recentemente a consciência de uma «crise» de grandes proporções, que provém em primeira instância da peculiar globalização financeira do capitalismo actual, mas que inevitavelmente se vai propagando à esfera da chamada economia real.

Sobre uma tal «crise», cuja análise aprofundada não cabe neste texto, é no entanto legítimo e necessário juntar algumas notas de enquadramento.

Em primeiro lugar, deve reconhecer-se a especificidade da presente conjuntura, que não é semelhante à «Grande Depressão» dos anos 30 do século passado, ao contrário do que por vezes é sugerido. E isto fundamentalmente por duas razões: a estreita interdependência (ou «globalização») das economias no presente sistema mundial; a escalada dum capitalismo financeiro, ávido de dinheiro e desregulado, que contamina a chamada economia real de fragilidade e incerteza.

Já antes notámos que a globalização consolida um mercado global único, embora cada vez mais desigual. A globalização na sua vertente financeira actual, permite que o mercado global seja fortemente condicionado por movimentos especulativos do capital, mais do que por factores próprios da economia real, como produtividade e inovação.

Em segundo lugar, pode reconhecer-se que a Economia (dimensão específica do processo histórico) continua a ter papel determinante na evolução social global do capitalismo, mas a «Economia», que pretende ser «científica», no quadro do paradigma dominante, é irrelevante para a compreensão da primeira. Por outras palavras: o ponto de vista económico hoje prevalecente (a «ideologia», no sentido de Schumpeter, dos economistas) não favorece, antes dificulta, a compreensão profunda do que correntemente se designa por «crise». Lamentavelmente, nem Marx nem Schumpeter parecem merecer do pensamento económico actual novas leituras ou interpretações adequadas a este incerto dealbar do Século XXI.

Em terceiro lugar, surge um aparente consenso sobre a necessidade de encontrar novas formas de regulação do capitalismo. Mas o consenso desaparece quando se trata de afirmar, com algum rigor, os meios e os fins das pretendidas reformas de instituições como o FMI e o Banco Mundial, ou até o Banco Central Europeu. Na verdade, o próprio «Consenso de Washington», que durante algum tempo constituiu um quadro de referência normativo das políticas económicas nacionais dos estados, digamos, «bem comportados», deixou de merecer a designação, pois está-se longe dum «consenso», seja ele qual for.

Perante este panorama, que dizer da estratégia necessária para superar a actual crise sistémica do mercado global? Procurando evitar o banal discurso de boas intenções, o fácil wishful thinking que confunde desejos com realidades, é possível adiantar alguns critérios básicos que deverão nortear essa estratégia.
Procuramos critérios que, além do mais, deverão abrir perspectivas para largos consensos não só nos princípios mas também nas práticas a seguir.

 

Como superar a crise?

Não faria sentido procurar a «receita» apropriada para curar as actuais maleitas deste capitalismo do século XXI, tão diferente do capitalismo do tempo da chamada Revolução Industrial inglesa e tão semelhante, apesar disso, nalguns dos seus fundamentos essenciais: propriedade privada dos meios de produção, objectivo primordial do lucro máximo por parte dos actores que concorrem no mercado, tendência para a concentração do poder económico nalguns desses actores. Uma surpreendente e notável característica do capitalismo consiste exactamente nessa capacidade de se transformar, em função dos contextos históricos que se vão sucedendo, e ao mesmo tempo, manter determinadas configurações básicas que lhe conferem a identidade e vitalidade próprias.

Ora, também nesta matéria se poderá afirmar que «o caminho faz-se, fazendo-se»: o que está em causa é a busca duma prática bem orientada e capaz de correcção pela leitura da experiência adquirida. Importa portanto tentar caracterizar essa prática, para esboçar ou sugerir o correspondente «caminho».

Há alguns critérios gerais, aliás reconhecidos com crescente frequência, que parecem indiscutíveis:

A estratégia deve ser transnacional, isto é, deve assentar numa multiplicidade de entidades que apesar de representativas de diferentes nacionalidades, convergem em certas formas de concertação;

A estratégia deve ter um fundamento ético explícito e credível, isto é, o discurso sobre os princípios não deverá confundir-se com alguma fórmula mais ou menos hipócrita de marketing, cultural, social ou político;

A estratégia deve permitir a mobilização dos diferentes actores da sociedade civil, ou seja, deve abrir um largo campo de actuação «de baixo para cima» e não apenas dirigir-se aos grandes actores habituais da política económica.

De passagem, note-se que a aceitação destes critérios implica necessariamente a superação do «político» no estrito sentido habitual do termo, que além do mais conduz a classificações do tipo «esquerda» ou «direita», cada vez mais difíceis de caracterizar, mesmo nesse terreno próprio da acção «política»

Vejamos mais de perto estes três critérios.

A tentativa de encontrar uma solução «nacional» para a presente crise, mesmo que se trate da nação ainda mais poderosa do mundo, é incompatível com a dimensão da globalização em que temos insistido, isto é, a «integração» formal ou informal das economias nacionais num «único» mercado global. Mudar a ordem económica hoje prevalecente apenas à escala dum país, significaria necessariamente uma tentativa – mesmo à partida condenada ao fracasso – de proteccionismo ou autarcia.

O que conduz a uma reflexão sobre a reforma de instituições como o Banco Mundial ou o FMI, e à necessidade de algo como um segundo acordo de Bretton Woods para reformulação do presente sistema de regulação da economia mundial.

A questão ética é primordial, se for tomada com a seriedade e profundidade que se tornam necessárias. Não como discurso moralista, que quando muito apela para boas intenções, mas como núcleo essencial à profunda reforma do sistema económico mundial hoje ainda dominante. Seria desejável que algo como um novo «Consenso de Washington», explicitamente fundado em princípios éticos, e associado à realização empenhada dos «Objectivos do Milénio», preconizados pela ONU, pudesse surgir nesta perspectiva.

A visão «bottom up» do desenvolvimento carece de novo impulso, quer em extensão, quer em profundidade. Um largo campo de «inovação social», como as propostas de Muhammad Yunus, prémio Nobel da Paz, no domínio do microcrédito e daquilo que designou por «negócio social», se abre aqui aos actores económicos, mesmo situados num contexto de economia de mercado.

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Os Limites da Competitividade (Henrique Rattner) Território e competitividade sistêmica (Juarez de Paula)

1 Comentário Add your own

  • 1. Cláudio Teixeira  |  22 de junho de 2009 às 15:36

    No último parágrafo da secção “Como superar a crise?, atrevo-me a sugerir que à referência aos “Objectivos do Milénio” se acrescente o programa ou “agenda” do “trabalho digno” (decent work) da OIT. Reforçar o protagonismo dessa “agenda” seria contribuir concretamente (“não como discurso moralista”) para a “profunda reforma do sistema económico mundial…”

    Responder

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