Valores na economia pós-crise (Frei Beto)
5 de março de 2010 at 15:25 Sofia Dowbor 2 comentários
Por Frei Beto, março de 2010
A crise financeira desencadeada a partir de setembro de 2008 exige, de todos, profunda reflexão e mudança de atitudes. Ela encerra uma crise mais profunda: a do modelo civilizatório. O que se quer: um mundo de consumistas ou um mundo de cidadãos?
Frente às oscilações do mercado agiram os governos. A mão invisível foi amputada pelos fatos. A destrambelhada desregulamentação da economia requereu a ação regulamentadora dos governos. O mercado, entregue a si mesmo, entrou em parafuso e perdeu de vista os valores éticos para se fixar apenas nos valores monetários. Foi vítima de sua própria ambição desmedida.
A crise nos impõe, hoje, mudanças de paradigmas. O que significa a robustez dos bancos diante da figura esquálida de 1 bilhão de famintos crônicos? Por que, nos primeiros meses, os governos do G8 destinaram cerca de US$ 1,5 trilhão (até hoje, já são US$ 18 trilhões) para evitar o colapso do sistema financeiro capitalista e apenas (prometeram em L’Aquila, ainda não cumpriram) US$ 20 bilhões para amenizar a fome no mundo?
O que se quer salvar: o sistema financeiro ou a humanidade?
Uma economia centrada em valores éticos tem por objetivo, em primeiro lugar, a redução das desigualdades sociais e o bem-estar de todas as pessoas. Sabemos que, hoje, mais de 3 bilhões – quase metade da humanidade – vivem abaixo da linha da pobreza. E 1,3 bilhão abaixo da linha da miséria. A falta de alimentação suficiente ceifa, por dia, a vida de 23 mil pessoas. E 80% da riqueza mundial encontram-se concentradas em mãos de apenas 20% da população do planeta.
Sem alterar esse panorama a humanidade caminhará para a barbárie. Os governos deveriam estar mais preocupados com o crescimento do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do que com o aumento do PIB (Produto Interno Bruto). O que importa, hoje, é a FIB (Felicidade Interna Bruta). As pessoas, em sua maioria, não querem ser ricas, querem ser felizes.
A crise nos faz perguntar: que projeto de sociedade legaremos às futuras gerações? Para que servem tantos avanços científicos e tecnológicos se a população não conta com serviços de saúde acessíveis e eficazes; educação gratuita e de qualidade; transporte público ágil; saneamento básico; moradia decente; direito ao lazer?
Não é ético e, portanto, humano, um sistema que privilegia o lucro privado acima dos direitos comunitários; a especulação à frente da produção; o acesso ao crédito sem o respaldo da poupança. Não é ético um sistema que cria ilhas de opulência cercadas de miséria por todos os lados.
Uma ética para o mundo pós-crise tem como fundamento o bem comum acima das ambições individuais; o direito de o Estado regular a economia e assegurar a toda a população os serviços básicos; o cultivo dos bens infinitos, espirituais, mais importante que o consumo de bens finitos, materiais.
A ética de um novo projeto civilizatório incorpora a preservação ambiental ao conceito de desenvolvimento sustentável; valoriza as redes de economia solidária e de comércio justo; fortalece a sociedade civil organizada como normatizadora da ação do poder público.
O velho Aristóteles já ensinava que o bem maior que todos buscamos – até ao praticar o mal – não se encontra à venda no mercado: a própria felicidade. Ora, o mercado, não tendo como transformar este bem num produto comercializável, procura nos incutir a convicção de que a felicidade resulta da soma dos prazeres. Ilusão que provoca frustração e dilata o contingente de fracassados espirituais reféns de medicamentos antidepressivos e drogas oferecidas pelo narcotráfico.
O pior de uma crise é nada aprender com ela. E, no esforço de amenizar seus efeitos, não se preocupar em suprimir suas causas. Talvez as religiões não tenham respostas que nos ajudem a encontrar novos valores para o mundo pós-crise. Mas com certeza a tradição espiritual da humanidade tem muito a dizer, pois é na espiritualidade que a pessoa se enxerga e se mede. Ou, na falta dela, se cega e se atola. O ser humano tem sede de Absoluto.
Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: “Faço apenas um passeio socrático.” Diante de olhares espantados, explico: “Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: “Apenas observo quanta coisa existe que não preciso para ser feliz”.
Texto escrito a pedido do Fórum Econômico Mundial, 2010, de Davos.
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1.
Degopi de Jesus | 6 de março de 2010 às 17:15
Bastante romantico o texto de Frei Beto. É agradavel lê-lo.
Pena que a entidade a qual ele pertence não pratica o que prega.
Quando na idade média articulava assassinatos de reis e rainhas “não católicas” para ganhar poder.
Quando diante dos grandes conflitos mundias sempre esteve apoiando aqueles que matavam em nome de Deus.
E até hoje paparicam os mais abastados enquanto acumulam riquezas para cobrir os custos de seus rituais luxuosos, fornecendo para os miseráveis somente discursos. Alguém soube quanto o Vaticano mandou de recursos para as vitimas das inumeras catastrofes que têm ocorrido atualmente?
Tem sido comum todos criticarem os governos ppor praticas equivocadas que nos levaram a esta famigerada crise financeira. Mas vamos refletir um pouco. Quantos indios, favelados, miseráveis adoeceram ou morreram de fome por causa da crise. E quantos catolicos confiantes neste Deus que o Frei Beto prega tiveram suas vidas ceifadas, perderam bens e familiares com as ultimas catastrofes? Foi vontade de Deus? Entranho que seja da vontade de Deus que o teto de uma de suas casas (igreja em Porto Principe) caia em cima de uma de suas mais dignas fiéis (presidente da Pastoral da Criança)
quando ela estava pregando o bem em seu nome.
O Frei Beto é um importante ícone da igreja católica e muito importante na guerra por fiéis que esta trava contra os evangêlicos. Eu o vi na televisão e reconheço o valor que ele tem como “padre show”. Principalmente nesta era em que a Igreja Catolica quebra a ortodoxia de seus rituais através de cantos e danças. Porem ele escrevendo sobre economia mundial nos lembra o Delfin Neto no Ministério da Agricultura.
Finalizo considerando de forma mais focal o paragrafo que ele cita: “Talvez as religiões não tenham respostas que nos ajudem a encontrar novos valores para o mundo pós-crise”
Podem até terem, mas se forem como a dele:
“Mas com certeza a tradição espiritual da humanidade tem muito a dizer, pois é na espiritualidade que a pessoa se enxerga e se mede. Ou, na falta dela, se cega e se atola. O ser humano tem sede de Absoluto”
Terão pouca credibilidade. Principalmente se observamos que foram justamente integrantes das comunidades vitimas pelas ultimas catastrofes (Haiti e Chile) fortemente catolicas, que promoveram saques, roubos e desvios da ajuda comunitaria recebida, com o proposito de levar para casa !mais do que precisava para ser feliz”.
2.
Eli soares fernandes | 7 de julho de 2011 às 19:57
Eis que na religião predominante por aqui, se prega a palavra “rebanho” áqueles que a segue.
É claro que todo rebanho precisa de pastores, o qual treina seu rebanho á fazer aquilo que se pretende.
As pessoas se tornam cegas diante destes oradores extremamente habilidosos, se tornam verdadeiras ovelhas, sendo guiadas cegamente na total confiança que o pastor saberá qual será o melhor caminho a seguir.
Esquecem que a maioria das ovelhas na vida real, são exploradas até onde possa ser economicamente viável, sendo, a posteriore, descartadas.
Ou seja: levadas ao abate.
Então manter pessoas sob manipulação é extremamente interessante em certas circunstancias.
A receita seria: “CIDADANÍA E VISÃO CRÍTICA” no atual mundo em constante transformação.